Da liberdade cristã de consciência (20.2)

Estudos na Confissão de Fé de Westminster  •  Sermon  •  Submitted
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Introdução

As lições que agora passaremos a estudar têm como assunto básico a liberdade. Nada mais apropriado do que isto: depois de estudarmos a Lei de Deus (cap. 19), gastarmos tempo meditando na liberdade que temos em Cristo. A propósito, Jesus Cristo é o centro de nossa liberdade – cristã e de consciência – posto que ela é a “liberdade que Cristo [...] comprou para os crentes”. Porém, Ele não é o centro apenas porque a comprou para nós, mas também porque nos libertou para Ele, para que o sirvamos com amor filial e espírito voluntário.

O conceito cristão de liberdade

Antes de entrarmos no capítulo 20 da Confissão propriamente dito, precisamos entender o que é a visão cristã de liberdade. Isso para não nos perdermos entre os vários conceitos filosóficos que existem em nossa cultura. O cristianismo pressupõe que há um Deus criador e mantenedor de tudo que existe. Há uma ordem estabelecida por Deus (leis) que regem o universo física, social e espiritualmente. Desta forma, para os cristãos, a liberdade consiste em se sujeitar a essa ordem divina, ao passo que desobedecê-la implica a perda da liberdade[1].
A começar em Gênesis, no relato da Queda, a humanidade perdeu a liberdade que possuía na inocência primitiva. Perdeu a capacidade de conversar com Deus e de viver no Paraíso; o homem perdeu a liberdade de se alimentar sem o exercício do trabalho árduo, e a liberdade de viver sem a inexorabilidade da morte; a mulher perdeu a liberdade no relacionamento com o homem; a serpente perdeu a liberdade de movimento, e como representante de Satanás, teve a sina da extinção estampada em si nos moldes da promessa e maldição.[2]
O pecado é o que quebra a ordem estabelecida por Deus, ou melhor é a rebelião contra essa ordem. Por isso, Jesus afirma que, mesmo um homem livre (não escravo) que vive na prática do pecado é escravo do pecado (Jo 8.34). Ou seja, uma pessoa verdadeiramente livre é aquela que, a despeito de seu status social, crê em Jesus Cristo (Jo 8.32; Cl 3.10-11).
Tendo esse conceito em mente, podemos afirmar que:
1. Liberdade é diferente de autonomia. O autônomo é quem se faz lei para si mesmo e se opõe a qualquer forma de regulação que não seja sua própria consciência e gosto.
2. Liberdade é diferente de anarquia. A anarquia se nega a reconhecer o princípio de autoridade e busca uma vida sem governo externo.
3. Liberdade é diferente de independência no sentido de que posso, por mim mesmo, fazer o que eu quiser sem me reportar a outros ou sem medir as consequências das minhas decisões e atos nas outras pessoas.
Ou seja, a liberdade para o cristão não é absoluta, uma vez que ela deve estar a serviço de Deus e sujeita às suas leis.

A liberdade cristã

20.1 A liberdade que Cristo, sob o Evangelho, comprou para os crentes consiste em serem eles libertos do delito do pecado, da ira condenatória de Deus, da maldição da lei moral, e em serem libertos do poder deste mundo, do cativeiro de Satanás, do domínio do pecado, do mal das aflições, do aguilhão da morte, da vitória da sepultura e da condenação eterna; como também em terem acesso a Deus, em lhe prestarem obediência, não movidos por um medo servil, mas pelo amor filial e de espírito voluntário. Todos esses privilégios eram comuns também aos crentes sob a lei; mas, sob o Evangelho, a liberdade dos cristãos está mais ampliada, achando-se eles isentos do jugo da lei cerimonial a que estava sujeita a Igreja Judaica, e tendo maior confiança no acesso ao trono da graça e mais abundantes comunicações do Espírito de Deus, do que os crentes debaixo da lei ordinariamente alcançavam.

A liberdade que Cristo comprou

Desde a Queda a humanidade se tornou escrava. Adão foi escravizado por causa de sua ânsia de ser livre de Deus e todos os seus descendentes seguem o mesmo caminho de escravidão, embora pensem estar na trilha da liberdade. Mesmo os antigos filósofos pagãos do platonismo e estoicismo concordavam que “pessoas [...] controladas por seus vícios, são na verdade escravas”[3]. Desde a Queda, não o homem, mas o próprio Deus vem trabalhando para devolver a humanidade a liberdade perdida. Uma vez que o homem é escravo do pecado (Jo 8.32), Jesus veio ao mundo para libertá-lo de seus pecados (Mt 1.21).
o qual a si mesmo se deu por nós, a fim de remir-nos de toda iniquidade e purificar, para si mesmo, um povo exclusivamente seu, zeloso de boas obras. (Tt 2.14)
Ao apreciarmos a liberdade que temos em Cristo, devemos mesmo considerar que ela foi comprada por Jesus por meio de sua morte expiatória. Assim, a doutrina da Liberdade Cristã – a exemplo da adoção – é uma consequência, ou, como prefere Calvino, um apêndice[4], da justificação.
Em primeiro lugar, isso coloca a liberdade cristã numa perspectiva cristocêntrica pela qual somos levados a adorar e servir a Cristo porque Ele comprou nossa liberdade. De fato, tal consciência não nos permite abusar da liberdade cristã, usando-a como pretexto para libertinagem, mas, ao contrário, a fim de santificar Cristo como Senhor em nosso coração (1Pe 3.15). Segundo, devemos considerar que nossas “liberdades não são insignificantes [...] Elas chegaram a até nós porque Jesus Cristo sofreu e morreu”[5].
Portanto, o fato que nossa liberdade foi comprada por Cristo nos põe diante de uma doutrina importantíssima para nossa fé e segurança. Sobre a liberdade cristã, Calvino explica:
é coisa muitíssimo necessária, e à parte de cujo conhecimento as consciências sem dúvida não ousam experimentar quase nada, em muitas coisas hesitam e se retraem, estão sempre a mudar e a temer.[6]

No que consiste a liberdade cristã

O valor de nossa liberdade também tem a ver com os benefícios que ela nos dá. Nossa Confissão apresenta uma lista muito rica das bençãos ligadas a liberdade que Cristo comprou para nós.
1. Do delito do pecado
2. Da ira condenatória de Deus
3. Da maldição da lei moral
4. Do poder deste mundo
5. Do cativeiro de satanás
6. Do domínio do pecado
o qual se entregou a si mesmo pelos nossos pecados, para nos desarraigar deste mundo perverso, segundo a vontade de nosso Deus e Pai, (Gl 1.4)
7. Do mal das aflições
8. Do aguilhão da morte
9. Da vitória da sepultura
10. E da condenação eterna
Agora, pois, já nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus. (Rm 8.1)
Além, de estarmos livres desses males, há também os privilégios que a liberdade que Cristo nos comprou garante:
11. Acesso a Deus: pelo qual temos ousadia e acesso com confiança, mediante a fé nele. (Ef 3.12)
12. Em lhe prestarem obediência, não movidos por um medo servil, mas pelo amor filial e de espírito voluntário.
Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes, outra vez, atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos: Aba, Pai. (Rm 8.14–15)

Liberdade no Antigo e no Novo Testamentos

Ainda que a “Igreja Judaica” gozasse de liberdade, os crentes do Novo Testamento a têm de forma mais abundante, posto que estão livres da lei cerimonial. Além, contam com a confiança ainda maior em Cristo e do auxílio do Espírito Santo.

Conclusão

A liberdade cristã que Cristo nos outorgou é um de nossos maiores bens na vida cristã. Por causa dela somos realmente livres de tudo que nos escravizava e fazia mal e, por outro lado, estamos livres para ter plena comunhão com Deus e servi-lo, não como meros escravos, mas como filhos e herdeiros. Jesus é o centro de nossa liberdade. Ele é a sua causa e o seu fim. Por Cristo e para Ele somos livres.

Deus é o único Senhor de nossa consciência

20.2 Só Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e dos mandamentos humanos que, em qualquer coisa, sejam contrários à sua Palavra, ou que, em matéria de fé ou de culto, estejam fora dela. Assim, crer nessas doutrinas ou obedecer a esses mandamentos, por motivo de consciência, é trair a verdadeira liberdade de consciência; e requerer para eles fé implícita e obediência cega e absoluta, é destruir a liberdade de consciência e a própria razão.
Ninguém pode escravizar a consciência de outra pessoa, impondo a ela o que é certo ou errado ou aquilo que deve ser feito ou não. Nem mesmo eu devo escravizar a minha própria consciência. Nossa Confissão deixa claro que “Só Deus é Senhor da consciência, e a deixou livre das doutrinas e dos mandamentos humanos que, em qualquer coisa, sejam contrários à sua Palavra”.
Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o seu próprio senhor está em pé ou cai; mas estará em pé, porque o Senhor é poderoso para o suster. (Rm 14.4)
Tu, porém, por que julgas teu irmão? E tu, por que desprezas o teu? Pois todos compareceremos perante o tribunal de Deus. (Rm 14.10)
Um só é Legislador e Juiz, aquele que pode salvar e fazer perecer; tu, porém, quem és, que julgas o próximo? (Tg 4.12)
Aqui temos duas coisas a observar:

Estamos livres de doutrinas e mandamentos humanos que sejam contra a Palavra de Deus

Pastores, pais, governos, igrejas, denominações ou quem quer que esteja em autoridade deve tomar o cuidado de não obrigar as consciências das pessoas com coisas que não concordem com a Palavra de Deus ou que não sejam seu ensino explicito ou que dela não se possam apreender por princípio.
A abrangência disso é grande, pois envolve qualquer coisa – usos e costumes, comida etc. – e, especialmente aquilo que é mais importante: a fé e o culto. Doutrina e adoração são assuntos privativos da Palavra de Deus e somente ela deve governar a consciência dos homens.

Nossa consciência deve estar sujeita a Deus, que é seu Senhor

Embora livres de doutrinas e mandamentos humanos, nossa consciência deve sujeição a Deus. Seu senhorio sobre a consciência de seus filhos é exercido por sua Palavra. Portanto, a Bíblia é a única autoridade absoluta que governa a vida dos crentes. O que ela ordena deve ser obedecido, o que ela proíbe deve ser evitado e, onde ela se cala, nós nos calamos também. Assim, as coisas que estão fora da Palavra de Deus não devem ser exigidas aos homens nem, a elas, devemos nos obrigar.
Vós, porém, não sereis chamados mestres, porque um só é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos. A ninguém sobre a terra chameis vosso pai; porque só um é vosso Pai, aquele que está nos céus. Nem sereis chamados guias, porque um só é vosso Guia, o Cristo. (Mt 23.8–10)
Mas Pedro e João lhes responderam: Julgai se é justo diante de Deus ouvir-vos antes a vós outros do que a Deus; (At 4.19)
Então, Pedro e os demais apóstolos afirmaram: Antes, importa obedecer a Deus do que aos homens. (At 5.29)
Paulo, nas Escrituras (Gl 5.1, 13) ensina que Cristo nos libertou para a liberdade e que Ele nos chamou para ela. No pacote da salvação, há itens que não apenas nos libertam da escravidão do pecado, mas também da escravidão da consciência, sobretudo, no que se refere a doutrinas e mandamentos de homens e os cristãos devem usufruir dessa liberdade conquistada por Cristo.
Ninguém deveria nos mandar crer em uma doutrina contrária a Palavra de Deus ou nos mandar cultuar de forma contrária a ela. Além do mais, ninguém deveria sequer nos pedir, em nome de Deus, que acreditássemos ou fizéssemos algo que seja “além de” ou “a mais do que” a Palavra de Deus.[7]

Coisas que comprometem a liberdade cristã

A Confissão de Fé de Westminster aponta duas coisas que traem e destroem a liberdade cristã:
1. “Crer nessas doutrinas ou obedecer a esses mandamentos”: muitas vezes nos deixamos persuadir pelos conselhos e ensinos de outros e os colocamos acima da Palavra de Deus. A ignorância sobre o ensino bíblico, o zelo cego, o tradicionalismo sem escrúpulo, o temor de homens, sobretudo de líderes religiosos, pode escravizar nossa consciência de tal forma que nos sujeitamos a regras humanas, criadas por nós mesmos ou por outros. Obrigar-se a essas coisas por “motivo de consciência” é trair a própria liberdade cristã.
Se morrestes com Cristo para os rudimentos do mundo, por que, como se vivêsseis no mundo, vos sujeitais a ordenanças: não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro, segundo os preceitos e doutrinas dos homens? Pois que todas estas coisas, com o uso, se destroem. Tais coisas, com efeito, têm aparência de sabedoria, como culto de si mesmo, e de falsa humildade, e de rigor ascético; todavia, não têm valor algum contra a sensualidade. (Cl 2.20–23)
Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais, de novo, a jugo de escravidão. (Gl 5.1)
2. “Requerer para eles fé implícita e obediência cega e absoluta”: o outro lado da moeda é obrigar a consciência alheia, exigindo das pessoas fé implícita e obediência cega e absoluta. Quem procede dessa maneira está requerendo das pessoas uma autoridade que não lhe pertence, ou seja, está se fazendo Deus sobre elas. Pastores devem ser especialmente cuidadosos nessa questão. Há muitos que conferem às suas próprias palavras autoridade divina e confundem opinião pessoal com mandamento bíblico. Há pessoas de boa intenção que podem acidentalmente coagir uma consciência com conselhos controladores e há aquelas, que por sede de poder, impõem-se propositalmente sobre a consciência de outros e até de uma congregação inteira. Quando isso acontece, a liberdade cristã é destruída.

Obediência cega e fé implícita

Segundo a Palavra de Deus, ninguém deve obedecer cegamente a quem quer que seja: homem ou instituição. Esta obediência cega é fruto da ignorância. Muitos têm suas consciências escravizadas por outros porque renunciaram ao conhecimento acessível a todos nas Escrituras Sagradas. A fé cristã, embora não seja mero exercício intelectual ou racional, envolve conhecimento, posto que ele contribui para a amadurecimento da fé e, consequentemente, da liberdade cristã. Por isso, a Bíblia chama de “mais nobres” os que investigam as Escrituras a fim de conhecê-las melhor e de se livrarem de enganos.
Ora, estes de Bereia eram mais nobres que os de Tessalônica; pois receberam a palavra com toda a avidez, examinando as Escrituras todos os dias para ver se as coisas eram, de fato, assim.
(At 17.11)
A fé implícita é um conceito que a Igreja Católica Romana criou nos tempos do escolasticismo e que muitas instituições e líderes religiosos usam atualmente. “Este conceito retira virtualmente da fé o elemento de conhecimento. Alguém poderá ser considerado um crente verdadeiro, se tão somente estiver pronto a crer naquilo que a Igreja ensina, sem saber realmente do que se trata”[8]. Por meio dessa doutrina, impõem-se ao fiel que creia na Igreja em vez de crer na Palavra de Deus. É uma fé baseada na ignorância e não no conhecimento. É um erro que destrói a liberdade cristã porque “a fé repousa no conhecimento de Deus e de Cristo [Jo 17.3], não na reverência à Igreja”[9].
Porventura crer seria nada entender, contanto que alguém submeta obedientemente seu entendimento à Igreja? A fé não se assenta na ignorância, mas no conhecimento, e certamente não apenas o conhecimento de Deus em si mesmo, como também da divina vontade. Porque não conseguimos a salvação por estarmos dispostos a aceitar como verdade tudo quanto a igreja tenha prescrito, ou porque lhe relegamos a função de indagar e conhecer.[10]
Para termos usufruto pleno de nossa liberdade cristã, teremos que nós mesmos ler as nossas Bíblias, em vez de delegar a outros essa tarefa. A fé cristã é explícita, ou seja, ela se fundamenta no conhecimento do Deus Trino e de sua vontade revelada nas Escrituras do Antigo e do Novo Testamentos. Como Jesus nos ensinou: “e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8.32).
E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste. (Jo 17.3)

Conclusão

Jesus libertou nossa consciência de doutrinas e mandamentos de homens. Não estamos obrigados a regras do tipo “não manuseies isto, não proves aquilo, não toques aquiloutro” (Cl 2.21). Portanto, somente Deus, nosso único legislador e juiz (Tg 4.12), é o Senhor de nossa consciência, o provedor de nossa liberdade e seu limitador. Porém, isso não significa que não devemos obedecer a nossos líderes espirituais (Hb 13.7, 17), mas que somente devemos nos sujeitar a eles enquanto eles mesmos estiverem com suas próprias consciências sujeitas à Palavra de Deus.
[1] Liberdade, in: Dicionário de ética Cristã, São Paulo, Brasil: Cultura Cristã, 2007, p. 394–95. [2] Ibid. [3] Liberty, in: BROMILEY, Geoffrey W (Org.), The International Standard Bible Encyclopedia, Revised, Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans, 1988, v. III, p. 120. [4] As institutas, III, XIX, 1. [5] DIXHOORN, Chad Van, Guia de estudos da Confissão de Fé de Westminster, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 271. [6] As Institutas, III, XIX, 1. [7] DIXHOORN, Guia de estudos da Confissão de Fé de Westminster, p. 274. [8] BERKHOF, Louis, Teologia Sistemática, 4. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012, p. 468. [9] As Institutas, III, ii, 3. [10] As Institutas, III, ii, 2.
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