Divórcio e a dureza do coração (Mt 19.3-12)

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Nessa série sobre casamento, na primeira exposição buscamos definir o que é o casamento à luz das Escrituras. Vimos que ele envolve a bênção de Deus para homem e mulher se unirem em relação amorosa, potencialmente fecunda e para o exercício de sua mordomia. É uma aliança diante de Deus. Essa é a vontade de Deus.
Na segunda mensagem vimos quais os papéis do marido e da esposa, onde observamos a ênfase da atitude de cada um para com o outro quando se sujeitam a si no temor do senhor: as esposas, sendo submissas aos seus maridos como a igreja o é à Cristo; os maridos amando suas esposas como Cristo ama a igreja.
Agora vamos falar sobre o divórcio. É importante destacarmos que em alguns pontos não podemos ser dogmáticos, ou seja, encerrar questão, por dificuldades interpretativas e a humildade diante do texto que isso exige. Porém, tentaremos nos deter ao ensino claro das Escrituras para nosso sermão de hoje e trazer aplicações às nossas vidas. Algumas questões que necessitam de mais tempo serão trabalhadas em nossa escola bíblica dessa terça-feira.

1. Jesus, casamento e o divórcio

Vejamos que as palavras de Jesus vêm de uma resposta a uma cilada montada pelos fariseus. Ao que parece, pela perspectiva deles, qualquer resposta que Jesus desse ele estaria em dificuldades.
Há um contexto teológico importante aqui. Entre os judeus haviam diferentes opiniões acerca do ensino de Moisés sobre o divórcio em Dt 24. O que seria “algo escandaloso” [עֶרְוַ֣ת דָּבָ֔ר / erwath dabhar]? Segundo Shamai e seus seguidores, seria uma conduta relacionada ao adultério. Segundo Hillel e seus discípulos, algo bem mais amplo, interpretando que “não achar favor a seus olhos” daria base para o divórcio por razões mais triviais como servir uma comida queimada ou, conforme William Hendriksen (Mateus, Comentário do Novo Testamento, 2010) “se em casa ela falasse tão alto que os vizinhos a ouvissem”. Essa interpretação de Hillel, ao que parece, era a majoritária - e talvez até a que os discípulos concordavam (v. 10). Era esse o ambiente cognitivo acerca do divórcio em que a pergunta “é lícito ao marido repudiar a sua mulher por qualquer motivo?” surge.
Se defendesse Hillel, Jesus estaria mal diante dos discípulos de Shamai e seria visto como alguém de extrema flexibilidade moral - e provavelmente teria uma rusga com seu público feminino de seguidores. Se defendesse a posição de Shamai, teria uma multidão [Mt 19.2] ali presente descontente e poderia se acusado injustamente de incoerência, visto sua proximidade com os pecadores.
A) A ênfase de Cristo é o casamento
Vejamos que Jesus não foge da pergunta, mas reorienta toda a perspectiva sobre a questão do casamento e divórcio. É como se Jesus dissesse: “antes de responder sobre quando o divórcio pode ocorrer, vocês deveriam compreender o que é o casamento”. A resposta de Jesus inicia com a ênfase correta: antes de irmos para Dt 24, precisamos olhar para Gn 1.27 e 2.24 [vocês não têm lido?]. De certa forma foi o que tentamos fazer nessa série, logicamente de forma muito mais humilde do que as poucas, mas preciosas palavra do nosso Senhor Jesus.
Jesus cita as passagem de Gênesis. Deus fez o homem e a mulher para o casamento [fez homem e mulher ordenou: se unam] de forma que não são mais dois, mas uma só carne. Como se separar o que é uno?* Não é possível se fragmentar - se dividir. O movimento do casamento é o homem [e a mulher por conseguinte] se desvencilhar do seu seio familiar paterno [da sua “tenda”] para uma dedicação primária ao cônjuge. Jesus interpreta Gn 2.24 como uma ordenança [deixará e se unirá]. Há um novo lar, uma nova família, um novo ser. Nas palavras de Jesus: “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem”.
*A própria doutrina da Trindade nos aponta para pessoas distintas porém unidas indissociavelmente em amor e dedicação mútuos.
Aplicação: A primeira coisa a se pensar sempre é cumprir a vontade de Deus.
O primeiro caminho sempre deve ser o do serviço real e vívido ao seu cônjuge. Se pelo caminho há desvio, perturbações e sofrimento, o que cabe é arrepender-se e cumprir a vontade de Deus.*Deus não se separa de seu povo. Ninguém deve buscar ser o pivô da separação, nem procurar a separação como o caminho de solução viável. Que se há motivos para separar, ainda o principal motivo a se considerar é a sustentação da aliança que foi firmada.
Aplicação: A aliança sustenta o amor e não o contrário.
Nós mudamos - isso significa que se você se casar com sua “alma gêmea” ela não será mais em algum tempo. Tim Keller lembra um texto me que é dito: “minha esposa teve cinco maridos; todos eles eram eu”. O Antigo Testamento, como lembra John Piper, possui péssimos casamentos, mas nenhum divórcio.
B) A interpretação de Cristo do divórcio
Os fariseus, então, replicaram trazendo à tona o texto de Moisés, que consta em Dt 24. O ponto é: Jesus, se os casais não devem se separar, porque Moisés mandou dar carta de divórcio e repudiar? Vamos tentar compreender esse texto de referência.

24  1 Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e se ela não for agradável aos seus olhos, por ter ele achado coisa indecente nela, e se ele lhe lavrar um termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir de casa; 2 e se ela, saindo da sua casa, for e se casar com outro homem; 3 e se este a aborrecer, e lhe lavrar termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir da sua casa ou se este último homem, que a tomou para si por mulher, vier a morrer, 4 então, seu primeiro marido, que a despediu, não poderá tornar a desposá-la para que seja sua mulher, depois que foi contaminada, pois é abominação perante o SENHOR; assim, não farás pecar a terra que o SENHOR, teu Deus, te dá por herança.

(i) Por causa da dureza de vosso coração
Antes é necessário salientar que Jesus não possui apenas uma interpretação, no sentido de interpretar palavras de outro ou de ser mais uma interpretação. O que ele faz é trazer à luz ao que ele mesmo disse através de outro [no caso, Moisés]. Dito isso, Jesus nos ensina que Moisés não estabelece o fundamento do divórcio, mas ele apresenta uma realidade. Moisés descreve uma situação que ocorre na realidade, ela é observável: pessoas se separam - pessoas se separavam naqueles povos e naquela cultura. É isso que Moisés faz nos três primeiros versículos: descrever uma situação que só ocorre devido a dureza do coração humano [não existe divórcio sem culpa como as celebridades querem nos ensinar - “não existe ‘divórcio feliz’” (John Piper)]. Mas Moisés também firma a lei que só existe existe por causa do fato ali descrito: se alguém se separar, será entregue um documento libertando essa mulher para uma nova e legítima relação. Há, com a carta de divórcio, em primeiro lugar, um proteção à mulher. Ela não ficará desamparada, mas poderá contrair novo matrimônio.
Há uma outra coisa no versículo quatro: se o segundo marido se separar dela, ela não volta automaticamente para o primeiro. Isso não ocorrerá nem com a morte deste segundo. Ou seja, a entrega da carta de divórcio é tão séria que se esse novo casamento legítimo se dissolve pela morte do marido, ela não teria filiação alguma com o primeiro. A carta de divórcio, portanto, está relacionada a um objetivo de sua não banalização. Há relações que Deus não quer trazer de volta - e uma delas é divórcios que não deveriam ter acontecido, por isso essa separação não deveria ocorrer por quaisquer motivos. Moisés dá uma espécie de alerta: pensem bem no que vocês farão.
Jesus nos dirá em Mateus 19 que Moisés ”permitiu” [v. 8] - como conciliar com Mc 10.3,5 (“ordenou Moisés”, “esse mandamento”). Ou seja, Moisés mandou ou não? Observe que a linguagem se refere a um mandamento no sentido de que Moisés estabeleceu uma lei e não uma ordem do tipo “aconteceu algo, se divorcie”, mas “se vierem a se divorciar, que pensem muito bem e que seja dada carta de divórcio”. A bíblia não ordena o divórcio - ele não é uma recomendação. Mas por causa da dureza de coração, ele pode ocorrer, mas não foi assim desde o princípio.
Aplicação: Só existe divórcio por dureza de coração.
Como falei, o divórcio não é recomendado, mas sabemos que acontece. O divórcio é um dos principais reflexos do pecado na existência humana. O divórcio é a contramão da vontade de Deus estabelecida para um casal. A morte entrou no mundo pelo pecado, e o divórcio é um sintoma de que a ordem do mundo não está bem.
C) O divórcio ilícito
Jesus então, clarifica o que significa algo “não agradável” e “coisa indecente”: É algo que remete a imoralidade sexual - “relações sexuais ilícitas” [v. 9]. Pelo contexto da Lei, possivelmente seria uma imoralidade antes do casamento, visto que o adultério era punido com apedrejamento. Ou seja, a imoralidade sexual abrange uma gama de comportamentos e atitudes sexuais contrárias a um leito conjugal santo (Hb 13.4-5).
Por não estar restrito ao adultério, Dt 24 então poderia se referir diretamente às etapas de noivado e consumação do casamento - ou seja, divórcio como dissolução do noivado e não do casamento em si - já que naquela cultura o noivado já tinha os compromissos do casamento. Seria talvez uma situação semelhante à busca de José de dissolver o compromisso para casar (Mt 1.19). Alguns estudiosos defendem que esse é o mesmo contexto de Mateus 19. É uma questão difícil mesmo, mas penso que a fala dos discípulos apontam para uma visão de divórcio não do noivado mas do casamento em si no contexto do discurso de Jesus, visto que eles dizem que “não convém casar” - e também as correntes teológicas de fundo. Ou seja, se não pode se separar é melhor nem casar. E como trataremos em 1Co 9.10, Paulo se refere a uma figura de casamento e não de noivado.
Assim, Jesus diria que o divórcio não deveria ser a via de solução. Que ambos os cônjuges em primeiro lugar vejam o significado e busquem cumprir a vontade de Deus. Jesus tem em sua visão o casamento de seus discípulos e não de incrédulos. Pessoas que buscam a santidade, o enchimento do Espírito Santo (Ef 5.18) e a manifestação de Seu fruto [amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio - tão vitais para qualquer relacionamento (Gl 5.22-23). Que, por causa da dureza do coração, o divórcio somente poderia ocorrer pela indecência do outro cônjuge.
Jesus assevera, portanto, que um divórcio por motivos banais não é um divórcio legítimo. O ponto de Jesus ao dizer que “o homem que se divorciar de sua esposa por qualquer motivo e se casar novamente comete adultério” [o restante do versículo não consta na maioria dos manuscritos] é um alerta direto aos seus discípulos de que se separar para [não e] se casar novamente é um pecado gravíssimo. É um alerta aos cônjuges imorais: “não pense que se separar da tua mulher para ficar com outra reduz o peso do adultério. Esse divórcio foi ilícito - não é para isso que se faz carta de divórcio!”. O novo casamento não seria ilícito e considerado adultério exatamente porque o cônjuge infiel foi quem adulterou.
Um adendo importante: Mt 5.31 fala: “qualquer que repudiar sua mulher, exceto em caso de relações sexuais ilícitas, a expõe a tornar-se adúltera; e aquele que casar com a repudiada comete adultério”.
“Ela deve ser lida de maneira proléptica: ela é chamada adúltera porque poderia facilmente sê-lo. […] O grego, ao usar a voz passiva do verbo, não afirma o que a mulher se torna ou o que ela faz, e, sim, o que ela enfrenta, sofre, ou ao que fica exposta. Ela sofre o mal. Ele faz o mal. […] A meu ver, a seguinte tradução é muito melhor: “Todo aquele que se divorcia de sua esposa, exceto com base na infidelidade (dela), a expõe ao adultério” (ver a versão Atualizada), ou algo parecido. (William Hendriksen, Mateus, 2010). Pela ótica de Hendriksen, seria uma consequência:“ Aquela não é fulana, que era casada com beltrano? O que será que aconteceu para que tenha se separado? E esse agora que está com ela?”. Serve ainda como sabedoria para que casais que tomaram decisões equivocadas de separação por motivos ilícitos deem tempo para o cônjuge corrigir seus erros e não buscar se casar imediatamente.
Aplicação: Cristãos não se separam por motivos banais.
Cristo, falando aos seus discípulos, estabelece a ética do Reino. Seus discípulos não devem pensar que o divórcio por qualquer motivo traz panos quentes sobre a situação. Que o homem cristão e a mulher cristã devem estar cientes que seu desejo de se separar para formar uma nova vida, sendo que não há motivos lícitos para essa separação, é abraçar o pecado do adultério. É apostasia.
Aplicação: Se a separação ocorrer por imoralidade sexual, quem está se separando é o imoral.
A imoralidade sexual é um ataque gravíssimo a Deus. Aí daquele por quem veio o divórcio, pois se ocorreu porque a dureza de coração da parte ofendida não permitiu segurar aquela união contaminada pelo pecado, ainda assim quem buscou a separação não foi a parte inocente, mas a esposa imoral ou o esposo imoral quem está separando o que Deus uniu.
D) Jesus diz que o casamento é para Homem e Mulher
Os discípulos estavam muito acostumados com a visão mais liberal do casamento e o divórcio, sentindo a dureza das palavras de Jesus. Jesus respondeu que somente um grupo está apto para admitir seus ensinos: quem não é eunuco. Há eunucos de diversos tipos: por nascença; por obra humana como aqueles que serviam em palácios (2Rs 20.18; Et 2.14; At 8.27); e os celibatários (1Co 7.26). Fora esses grupos, deve-se admitir a vontade de Deus para o casamento - apto para receber são todos a quem o conceito é dado. Agora, estar apto verdadeiramente a isso é um trabalho árduo.

2. Paulo olhando para isso:

A) Ratificando a posição de Jesus
Em 1Co 7.10-11 Paulo remete à essas palavras de Jesus, instruindo aquela igreja onde a cultura era bem permissiva ao divórcio por quaisquer motivos que, se houver separação, não busquem contrair novos casamentos, mas que se reconciliem com os cônjuges. Ainda que a questão dos coríntios seja uma separação para fins missionários e de serviço, não cabia a separação. Ao que parece, a intenção de Paulo era a sustentação do casamento para que, após divorciados, eles não se casem com outros e depois queiram se unir de novo [uma reminiscência direta de Dt 24.1-4].
Fica claro que a instrução é a casais crentes. Eles tem problemas também. Mas Paulo prossegue para uniões em que somente um dos cônjuges é crente (1Co 7.12-14): também não se separem. Vocês já estavam casados quando se converteram e mais, vocês santificam seus cônjuges [não é crente que se casa depois com incrédulo, mas conversão posterior]. A presença dos servos de Deus sempre é abençoadora (Gn 39.5). Seus filhos são abençoados em vocês.
B) A liberdade do divórcio do crente com o incrédulo
É interessante como o peso de não se divorciar é reduzido para os casamento, digamos, mistos [crente e descrente]. Se mantém o casamento, se santifica o casamento e se tem filhos. No entanto, se o incrédulo quiser se separar, que se separe (1Co 7.15). Veja, em primeiro lugar, que a iniciativa é do incrédulo e você não deve tornar a vida dele um inferno para que isso aconteça (1Pe 3.1-7).
O tom é de liberdade: não estão sujeitos à escravidão. Não estar sujeito a quem não busca te amar voluntariamente e não amar quem não busca te respeitar voluntariamente. Essa divórcio é um chamado à paz.
É duro, mas parece ser realmente o tom do texto. Há uma diferença gigante ao casamento e que ambos estão em aliança com Deus. Você santifica o seu cônjuge, mas não é necessariamente o seu casamento ou você quem salvará o outro (v. 16).
Aplicação: viva com sabedoria com seu cônjuge incrédulo.
Não há necessidade de se separar. Tente ganhá-lo pelo bom comportamento: pela oração e cumprimento do seu chamado para o casamento. Seja um testemunho vido de piedade e do poder do evangelho. Se seu cônjuge é crente mas vive como incrédulo, é necessário que seja desenvolvida a disciplina bíblica para que ele seja salvo ou realmente reconhecido como incrédulo. E sendo incrédulo, não significa que você não possa tomar providências em casos de abuso ou violência - a justiça pode e deve ser aplicada. Mas se seu casamento vive em paz, ou em razoável paz, não busque dissolvê-lo, a menos que a outra parte tome a iniciativa.
Aplicação: Há perdão para divorciados.
Se seu caso se enquadra em alguma dessas questões dessa exposição, procure conversar e entender. Se você já adulterou e gerou prejuízos a pessoas, corra pra Cristo e busque as reparações necessárias! Se seu cônjuge te deixou sem motivos e você contraiu novo casamento na época do desconhecimento, Deus não quer que você se separe. Há graça para cobrir multidões de pecados. Deus é quem pode trazer perdão e cura. Se você foi traído ou traída pelo seu esposo/esposa, e se separou você não está cometendo adultério - não viva sob estigma mas sobre a identidade que Cristo te dá. Se você está separado e há como reaver o relacionamento, busque perdão do seus pecados e tentar restaurar o que foi perdido.
S.D.G.
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